Pouco antes de o livro Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler entrar em domínio público, no ano passado, a Alemanha se deparou com o dilema sobre como lidar com os escritos do homem que está no centro do capítulo mais sombrio da história do país e da Europa.
Nos 70 anos anteriores, o Ministério das Finanças do Estado da Baviera manteve o controle sobre os direitos autorais da obra – e, assim, impediu a republicação da notória obra antissemita escrita por Hitler, Mein Kampf (Minha Luta) na Alemanha.
Edição e imagens: Thoth3126@protonmail.ch
Por que livro Mein Kampf (Minha Luta) de Hitler virou best-seller após 70 anos de proibição
A Alemanha tinha como opção de seguir o caminho mais liberal adotado nos EUA, no Reino Unido, Canadá e Israel, que deixam a sociedade civil lidar com o Mein Kampf. Outra opção era fazer como a Áustria e outros países no passado, proibindo o livro de Hitler. Mas a Alemanha rejeitou ambas as opções e optou por uma abordagem altamente paternalista.
O Estado da Baviera deu meio milhão de euros para o Instituto de História Contemporânea (IfZ, na sigla em alemão), com sede em Munique e parcialmente controlado pelo governo, para produzir uma edição crítica comentada do livro de Hitler.
O que é o Mein Kampf?
- Publicado originalmente em 1925 – oito anos antes da chegada de Hitler ao poder
- Editado pelo vice-líder de Hitler, Rudolf Hess, o livro aborda sua ideologia política
- Inclui os futuros planos dele para o país, como o Lebensraum (Espaço Vital), a necessidade de colonizar territórios vizinhos para permitir que a Alemanha alcançasse seu potencial de desenvolvimento de forma plena
- O direito autoral sobre a obra, após a Segunda Guerra Mundial, foi dado ao Estado da Baviera, que se recusou a permitir a republicação do livro por temer seu poder de incitar ódio
- O livro caiu em domínio público no fim de 2015 e a nova edição vendeu milhares de cópias
Ao mesmo tempo, disse que processaria qualquer pessoa que publicasse edições não comentadas. Mas depois, em uma reviravolta, o governo da Baviera deu a entender que havia retirado o apoio financeiro para a edição comentada, deixando o IfZ sozinho no centro da polêmica.
Estratégia fracassada
Enquanto a data limite de janeiro de 2016 se aproximava, e, com ela, a publicação da nova versão do Mein Kampf, o instituto de Munique e autoridades do governo começaram a manifestar preocupação com possíveis consequências do lançamento. O instituto disse, na época, que seria perigoso se o Mein Kampf se tornasse um best-seller na Alemanha.
Mas, ao mesmo tempo, ele garantia ao público que isso nunca aconteceria. O diretor do instituto, Andreas Wirsching, declarou que seria irresponsável liberar o Mein Kampf para publicação sem comentários, porque neste caso todo mundo poderia fazer o que quisesse com o livro de Hitler.
O IfZ produziu uma edição de pouco apelo comercial, pesando 5,4 kg, incluindo 3.700 notas de rodapé e mais parecendo um tratado acadêmico. Até especialistas consideraram a leitura como extremamente tediosa. Por várias semanas foi quase impossível achá-lo nas livrarias, já que o instituto havia optado por fazer uma edição inicial com tiragem baixíssima. E mesmo as edições impressas demoraram – estranhamente – a chegar às lojas.
Mesmo assim, a abordagem paternalista defendida pelo instituto de Munique e autoridades alemãs fracassou completamente na tentativa de impedir que o Mein Kampf se tornasse um best-seller.
Primeira posição
O máximo que conseguiram foi adiar o aparecimento do livro de Hitler na lista de mais vendidos da Alemanha. O interesse do público parece na verdade ter aumentado, de forma desnecessária, nesta tentativa de ocultar o livro, que manteve viva sua aura de “obra proibida”. Pelo meio de abril, o Mein Kampf havia chegado aos primeiros lugares da famosa lista de best-sellers da Spiegel, onde ficou por várias semanas. Até agora ele está lá, na 14ª posição, apesar de muitas livrarias não terem o livro à mostra e outras só venderem sob encomenda.
A abordagem pode ter falhado mas, pelo visto, a preocupação com as possíveis consequências do livro de Hitler também se mostraram infundadas. Não há sinais de que as pessoas que compram o livro o estejam fazendo por outra razão senão curiosidade e interesse genuíno.
Também não há nenhuma razão para pensar que, em um ano, mais ou menos, esta primeira empolgação com todo o caso tenha desaparecido, e o Mein Kampf seja mais popular na Alemanha do que na Inglaterra ou nos EUA. Muitos devem se perguntar, como eu mesmo o fiz em um texto para o jornal alemão Die Welt, se não teria sido melhor seguir a abordagem liberal do mundo anglo saxônico, em vez do tratamento paternalista que desconfia da sociedade civil.
Na verdade, alguém poderia até questionar se o sucesso de Mein Kampf – e o fato e ele levar os alemães a se engajar com seu passado – é tão ruim assim, em um momento em que políticos do mundo todo são constantemente comparados a Hitler e que ressurge um populismo parecido com os dos anos 1920.
O medo expresso na Alemanha e em outros lugares, claro, é de que o livro possa dar início a uma nova onda de antisemitismo e que permita o fortalecimento da direita radical. A preocupação cresceu com o anúncio da editora de extrema-direita alemã Schelm de que publicaria uma versão de Mein Kampf sem comentários. O Estado da Baviera pediu a promotores que processassem a editora.
O anúncio da Schelm deve ser visto como uma jogada de marketing, assim como a decisão, anunciada na semana passada, do jornal italiano Il Giornale de distribuir cópias gratuitas do livro de Hitler. Mas esses lances só se tornam possíveis porque o governo da Baviera decidiu impedir publicações do livro por 70 anos e é improvável que tenham um efeito duradouro.
Neonazistas e seus simpatizantes tinham acesso fácil ao livro pela internet por anos e, por isso, é improvável que sejam afetados pela volta do Mein Kampf impresso. Na verdade, não há correlação entre a forma com que os países lidaram com o livro no passado e a força de movimentos extremistas nesses locais. Pode-se argumentar que o perigo está em outro lugar: que é o paternalismo da abordagem alemã na republicação de Mein Kampf, mais do que o livro em si, que está fortalecendo o populismo (radicalismo) de direita.
Como o intelectual alemão Nils Minkmar alertou na Der Spiegel, a arrogância cultural e a “soberba em relação a classes menos educadas” está levando à “alienação das classes baixas da sociedade liberal”, e assim ao reaparecimento do populismo de direita no país que Hitler uma vez liderou.
Thomas Weber é professor de História e Assuntos Internacionais na Universidade de Aberdeen. Seu livro Wie Adolf Hitler zum Nazi Wurde (Como Hitler virou um nazista – Propyläen, 2016), será publicado em inglês pela Oxford University Press and Basic Books. @Thomas__Weber