Um mecanismo de sobrevivência bastante eficiente e usado por muitas espécies de aranhas, lagartixas e opiliões parece ser comum também entre escorpiões: a autotomia, capacidade de soltar partes do corpo, automutilando-se, como meio de defesa contra predadores. No caso das aranhas e lagartixas esses membros se regeneram depois de algum tempo — a cauda da lagartixa, por exemplo, cresce como antes. Mas os escorpiões adultos do gênero Ananteris pagam um preço maior, a cauda não volta a crescer. Sem ela, esses artrópodes não têm como atacar suas presas ou se defender de predadores. As desvantagens vão além. Perder a cauda, com o ferrão na ponta, significa também ficar sem parte do sistema digestivo e o ânus.
A inusitada constatação é de um grupo internacional de pesquisadores, entre eles biólogos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Em um estudo publicado em janeiro na revista PloS One, eles observaram que, ao segurar a cauda de escorpiões com uma pinça, os animais, em segundos, se desprendiam delas em pontos específicos. Mesmo solta, a ponta continuava a se mexer, enquanto o escorpião fugia. Esse comportamento foi registrado em 14 espécies de escorpião, sobretudo entre machos adultos. Uma possível explicação seria a diferença no comportamento reprodutivo entre machos e fêmeas. Escorpiões machos são mais ágeis e tendem a vagar em busca de fêmeas durante a época de reprodução. Com isso, acabam se expondo a maiores riscos.
Esse comportamento defensivo foi apresentado pela primeira vez em 2011 no Congresso Latino-Americano de Aracnologia, na Colômbia. Até então, entre artrópodes, se conheciam casos de autotomia apenas de apêndices, como pernas e antenas. Agora os pesquisadores estão verificando que essa habilidade, mais comum entre machos, poderia ser uma manobra evolutiva, adquirida pelos escorpiões ao longo de milhões de anos, para garantir o sucesso reprodutivo. “Muitos escorpiões machos adultos costumam viver, em média, duas temporadas reprodutivas, enquanto as fêmeas adultas vivem por mais tempo”, explica a bióloga colombiana Solimary García Hernández, que está fazendo mestrado no departamento de Ecologia do IB-USP sob orientação de Glauco Machado e é uma das autoras do estudo.
Ao se desprenderem do que conhecemos como cauda, os escorpiões estão na verdade abrindo mão do ferrão e de parte de seu abdome, que inclui parte do sistema digestivo e o ânus. “Os machos, depois que a autotomia cicatriza, conseguem viver sem defecar por muito tempo. Inclusive, eles começam a predar animais menores porque não podem mais usar seu veneno na captura de presas grandes”, diz Solimary. Ainda assim, ela explica, esses escorpiões sobrevivem o bastante para acasalar. Sem cauda e com o sistema digestivo incompleto, alguns animais viveram até 8 meses. “Durante o período que lhes resta de vida, os machos conseguem cortejar as fêmeas e se reproduzir com sucesso, apesar de acumularem excremento e não comerem apropriadamente.”
Os pesquisadores acreditam que perda do abdômen deve envolver um maior risco para a fêmea do que para o macho. Talvez por isso elas não usem este mecanismo de defesa com frequência, preferindo atacar com os pedipalpos — uma espécie de perna com uma pinça na ponta localizada próxima à cabeça — antes de realizar a autotomia. No caso das fêmeas, cujos filhotes se desenvolvem completamente dentro delas, o acúmulo de excremento seria incompatível com a gestação. “Também é esperado que durante esse período ela precise se alimentar bem, mas, como a autotomia diminui a habilidade de caçar, se torna mais difícil a obtenção de alimento suficiente para ter a gestação completa”, diz. Assim, é possível que a reprodução da fêmea após autotomia se torne impossível. “Ainda desconhecemos muitos aspectos da biologia das espécies de escorpiões deste gênero. Nos próximos anos, outros estudos devem nos ajudar a entender melhor o que está acontecendo.”
Artigo científico
Mattoni, C. I. et al. Scorpion sheds ‘tail’ to escape: Consequences and implications of autotomy in scorpions (Buthidae: Ananteris). PloS One. v. 10, n. 1, p. 1-15. Jan. 2015.