Entrevista com Francesca Ciceri, desenvolvedora do Debian

 

Eu conheci Francesca na Debconf 11 em Banja Luka.  Se eu recordo corretamente, Enrico Zine é que me apresentou a ela, porque ela era a "madamezou" (seu apelido de IRC) que começou a se envolver com a equipe de publicidade. Desde então — e apesar de ter uma tese de bacharelado para concluir — ela ficou mais envolvida e até ganhou responsabilidades oficiais no projeto.

Antes de começar a entrevista, eu queria mencionar que Francesca está elaborando uma declaração de diversidade para o Debian… Eu estava esperando as discussões não darem em nada mas ela escutou todas as objeções e tratou de melhorar o texto e construir um consenso em torno dele. Obrigado por isso e continue com o bom trabalho, Francesca!

Raphaël: Quem é você?

Francesca: Meu nome é Francesca, eu tenho 30 anos e estudo Ciências Sociais. Atualmente eu moro na Itália mas estou planejando ir para o estrangeiro (não há muitos empregos aqui para cientistas sociais geeks). Além do Debian e do mundo FLOSS em geral, eu tenho paixões desenfreadas por chocolate; filmes de zumbi; sci-fi, livros de zumbi; {tricô|costura|artesanato} e bricolagem em geral; videogames de zumbi, bicicletas, desmontagem de objetos para ver que que tem dentro deles; filmes do splatter B, livros de David Foster Wallace, tocar trompete, e … eu já mencionei zumbis?

Os dias são muito curtos para todas essas coisas, mas eu tento fazer o meu melhor.



Raphaël: Como você começou a contribui para o Debian?

Francesca: Alguns anos atrás eu estive presa na cama por — literalmente — alguns meses, devido à uma série de graves crises de enxaqueca. Eu não era capaz de fazer nada: sem vida social, sem livros ou televisão. Então, eu decidi ligar o laptop e fazer algo construtivo com ele: Eu já era uma usuária Debian e parecia muito lógico para mim tentar dar um retorno à comunidade. Eu não sou uma programadora e eu não estudei Ciência da Computação, então o meu primeiro passo foi me juntar a uma comunidade on-line de Debian da Itália (Debianizzati) e ajudar com tutoriais, suporte a usuários, gerenciamento de wiki. Em alguns meses eu aprendi muitas coisas: ajudar outros usuários com seus problemas obriga você a fazer muita pesquisa!

Minhas primeiras contribuições para o projeto Debian foram na maioria traduções do site web principal. Os tradutores são os perfeitos observadores de erros de digitação: eles trabalham tão precisamente sobre o texto a ser traduzido que eles terminam fazendo um grande trabalho de QA. Assim é como eu comecei a contribuir para o site web do Debian: com coisas muito simples, corrigindo erros de digitação ou links errados ou tags wml equivocadas. Eu ainda me lembro do meu primeiro comitt para o site web: a ideia era pôr algumas tags em minúsculo, mas terminou que eu deixei faltando algumas delas e — além disso — eu as corrigi apenas na página em inglês e não nas traduções como necessário. Quando depois de alguns minutos, Kåre Thor Olsen — um antigo colaborador da equipe e agora webmaster  — reverteu o meu commit, eu me senti tão estúpida e cheia de vergonha. Maspara minha grande surpresa, ninguém me tratou como uma idiota por causa daquele erro: Gerfried Fuchs, um dos gurus da equipe, me responde de uma forma muito atenciosa e educada explicando o que eu fiz de errado e como fazer as coisascorretamente. Acho que esse episódio foi um momento decisivo na minha vida no Debian: há essa ideia de que Desenvolvedores Debian são apenas um bando de idiotas arrogantes e talvez isso foi verdade no passado, mas por minha experiência eles não são. bem, pelo menos os que eu conheci e com quem trabalho.

"Para minha grande surpresa, ninguém me tratou como uma idiota por causa daquele erro."

Desde então, eu me juntei à equipe WWW e os ajudei a aplicar o novo e brilhante design disponibilizado por Kalle Söderman. Muito trabalho foi feito durante a semana imediatamente antes do lançamento do novo site web. Oh, aquela foi uma semana! Nós trabalhamos noite e dia para ter o novo design pronto para 06 de fevereiro, e foi fantástico quando nós finalmente o publicamos, simultaneamente com o lançamento do Squeeze.

Ao mesmo tempo, eu comecei a contribui mais ativamente para a Equipe de Publicidade do Debian, não apenas traduzindo notícias mas também as escrevendo. Pode parecer assustador para um falante de inglês não nativo escrever algo a partir do zero em inglês, mas você tem que manter em mente que seu texto será revisado por falantes nativos antes de ser publicado. E nós temos alguns revidores fantásticos na equipe de localização para inglês: particularmente Justin B Rye, que é incansável no seu esforço e  — mais recentemente — Moray Allan.

Eu acho que sou particularmente sortuda por trabalhar com todas essas pessoas: há um clima especial tanto na equipe de Publicidade quanto na WWW, que faz você se sentir feliz em fazer as coisas e ao mesmo tempo o empurra para fazer mais, justamente porque é divertido trabalhar com eles compartilhando piadas, ideias, retóricas, patches e abraços.



Raphaël: Eu acredito que você passou pelo processo de novo membro muito rapidamente. Você agora é uma Desenvolvedora Debian que não sobe pacotes. Como foi a experiência e o que isso significa para você?

Francesca: Me tornar uma Desenvolvedora Debian não era tão óbvio para mim, porque eu não precisava ser uma DD para o trabalho que eu faço no Debian. Por exemplo, eu não mantenho pacotes, então eu não tinha razões para querer me tornar uma DD para ter permissão de subir pacotes. Por um tempo eu realmente não senti a necessidade de ser uma DD.

Felizmente, algumas pessoas começaram a me incomodar sobre isso, me pedindo para aplicar para o processo de NM. Eu lembro Martin Zobel-Helas fazendo isso por uma semana inteira todos os dias, e Gerfried Fuchs fazendo isso também. De repente, eu percebi que as pessoas com quem eu trabalhava achavam que eu merecia o status de DD e que eu simplesmente pensava que não merecia. Como uma não-programadora e mulher, havia provavelmente um pouco da síndrome do impostor envolvida. Tendo pessoas me encorajando, me deu mais confiança e o desejo de  finalmente me tornar uma DD. E então eu fiz.

O processo para DD que não sobe pacotes é idêntico a um para se tornar um DD que sobe pacotes, com uma exceção: na segunda parte do processo (chamada Tasks and Skills (tarefas e habilidades)) ao invés de perguntas sobre como criar e manter pacotes, há perguntas sobre o trabalho não relacionado a empacotamento que você geralmente faz no Debian.

resolução geral que criou a possibilidade de se tornar um DD que não sobe pacotes nos deu uma chance de reconhecer o grande esforço de contribuidores Debian que trabalham em várias áreas (traduções, documentação, trabalhos gráficos, etc.) que nem sempre eram consideradas tão importantes quanto os esforços de empacotamento. E isso é ótimo porque se você é um contribuidor regular, se você ama o Debian, e está comprometido com o projeto, não há razões para não ser um membro oficial do mesmo.

Como relação a isso, eu gosto da metáfora usada por Meike Reichle em sua recente palestra sobre o Projeto Debian Women (gravação do vídeo disponível aqui):

"um status de Desenvolvedor Debian é muito parecido com uma cidadania em um país no qual você vive. Se você vive em um país e você não tem cidadania, você pode encontra um trabalho, comprar um cavalo, ter uma família […] mas se esse país – em algum momento – decide ir em uma direção que você não gosta, não há nada que você possa fazer sobre isso. Você não está em posição de fazer nenhuma mudança ou fazer qualquer efeito sobre esse país: você apenas vive nele, mas não há nenhuma forma que você possa exercer influência sobre aqueles que conduzem esse país."



Raphaël: Você recentemente juntou-se à Equipe de Imprensa do Debian. O que isso acarreta e como você está gerenciando esta nova responsabilidade?

Francesca: A Equipe de Imprensa é basicamente a ala armada da Equipe de Publicidade: ela lida com anúncios que precisam ser mantidos privados até o lançamento, modera as listas de discussão debian-announce e debian-news e mantém contatos com pessoas da imprensa de fora do projeto.

O trabalho “real”, então, é feito dentro da Equipe de Publicidade. A parte mais importante do nosso trabalho é escrever anúncios e o boletim de notícias: enquanto o boletim de notícias é publicado bi-semanalmente, as notícias precisam ser escritas em um curto intervalo de tempo. O trabalho de localização é realmente importante na divulgação da mensagem do Debian, então nós trabalhamos estreitamente com os tradutores: tanto os anúncios quanto o DPN são geralmente traduzidos em quatro ou cinco idiomas diferentes.

O trabalho de publicidade pode ser estressante, pois nós temos prazos restritos, nós precisamos tomar decisões rápidas e frequentemente fazemos mudanças no último minuto. Pessoalmente, eu gosto disso: eu trabalho melhor sobre pressão. Mas eu reconheço que algumas vezes é difícil para os colaboradores aceitarem que nós não podemos debater interminavelmente os detalhes, nós temos apenas que continuar e fazer o nosso melhor em um determinado prazo.

"O trabalho de publicidade pode ser estressante, pois nós temos prazos restritos, […]. Pessoalmente, eu gosto disso."



Raphaël: Você é um dos principais editores por trás do Notícias do Projeto Debian. Qual é o papel e o escopo desse boletim de notícias?

Francesca: Notícias do Projeto Debian é o nosso amado boletim de notícias, sucessor direto das Notícias Semanais do Debian fundado por Joey Hess em 1999 e posteriormente mantido por Martin Schulze. Em 2007, o Notícias Semanais do Debian foi descontinuado mas em 2008 o projeto foi ressuscitado por Alexander Reichle Schmehl. A ideia por trás do DPN é proporcionar aos nossos usuários uma visão geral do que está acontecendo dentro e fora do projeto.

Como a equipe principal de editores é formada por três pessoas, o problema principal é ser capaz de coletar notícias suficientes a partir de várias fontes: nesse sentido, somos sempre gratos quando alguém nos indica posts de blogs interessantes, mensagens de correio ou artigos.

O DPN também é uma chance de não-programadores contribuírem para o Debian: propor notícias, escrever parágrafos e rever o rascunho antes da publicação são tarefas bastante fáceis mas muito úteis. Os falantes nativos de inglês podem fazer uma revisão (pois nenhum dos editores principais é um falante nativo) enquanto outros sempre podem traduzir o DPN em seu idioma nativo. As pessoas que querem nos ajudar poder dar uma olhada na nossa página wiki.

"O DPN também é uma chance de não-programadores contribuírem para o Debian."

Somente ontem eu percebi que desde janeiro não perdemos ou atrasamos uma edição: então eu gostaria de agradecer à fantástica equipe de editores, revisores e tradutores que tornaram isso possível.

A equipe agora está trabalhando em uma outra forma de divulgar as mensagens do Debian: um antigo projeto está finalmente tornando-se real. Fiquem atentos, surpresa chegando!



Raphaël: Você está tentando organizar sessões de treinamento via IRC mas que parecem não decolar no Debian enquanto isso é bem comum na comunidade Ubuntu. Como você explica isso?

Francesca: Eu não tenho certeza disso: tanto os usuários Debian quanto os colaboradores parecem apreciar essa iniciativa no passado. Eu fiquei bastante surpresa pela quantidade de membros do Debian presentes durante as várias sessões e pela quantidade de perguntas interessantes feitas pelos usuários. Então, a única razão que eu posso pensar a respeito é que eu preciso por mais entusiasmo para convencer as equipes a fazer isso: elas precisam de mais estímulo ( ou serem mais incomodadas!).

Eu, por mim, acho que as sessões de treinamento via IRC são uma ótima maneira de promover o nosso trabalho, compartilhar nossa melhor prática, falar sobre o nosso projeto para um público mais amplo. E com certeza eu tentarei organizar mais delas. Ajuda, sugestões, ideias são realmente bem vindas!



Raphaël: Se você pudesse empregar todo o seu tempo no Debian, em que você trabalharia?

Francesca: Há um projeto ao qual eu gostaria de dar mais afeto, mas eu sempre acabo sem tempo para fazê-lo: o projeto debian-community.org. Por volta de 2007, Holger Levsen o fundou com o objetivo de reduzir a lacuna entre o colaboradores do Debian e os usuários do Debian, dando a todos uma oportunidade de contribuir, compartilhar ideias e muito mais. O projeto foi descontinuado e eu realmente gostaria de ressuscitá-lo: nesses anos várias coisas mudaram, mas eu acho que a ideia principal de ter um nós para conectar as comunidades locais existentes ainda é boa e viável.  No Debian nós não temos a ampla e bem articulada infra-estrutura local presente em outras distribuições (Ubuntu, particularmente, mas também Fedora): mesmo que eu não goste de estruturas muito centralizadas, eu acho que uma melhor conexão entre o projeto e os grupos locais de usuários e comunidades on-line seria um passo à frente para o projeto.

Sendo parte da Equipe de Eventos, eu estou ciente do quanto precisamos melhorar nossa comunicação com os grupos locais. Um exemplo é a organização de eventos: algumas vezes, mesmo as equipes de Publicidade e Eventos não sabem dos eventos regionais relacionados ao Debian (como estande em conferências, oficinas, palestras, festas de instalação, etc).

O que nos falta é uma melhor comunicação. E o projeto debian-community.org poderia nos dar exatamente isso. Poderia ser um aglomerado de grupos locais, uma plataforma para organização de eventos e até um recurso útil para novatos que queiram encontrar um grupo local perto deles. Eu comecei algum esforço nesse sentido, enviando uma proposta sobre o assunto, trabalhando em um censo de grupos locais de Debian. Qualquer ajuda é apreciada!

Eu estou realmente curiosa para ver quantas comunidades Debian (ao redor do mundo e da web) estão lá fora, e eu adoraria ter os membros dessas comunidades melhor conectados com o Projeto Debian.



Raphaël: Qual é o maior problema do Debian?

Provavelmente o fetichismo de quase todos nós pelos detalhes menos importantes. É o outro lado da moeda do compromisso do Debian com a excelência técnica e o nosso perfeccionismo, mas algumas vezes leva apenas à discussões intermináveis sobre detalhes, e isso é um bloqueio para várias iniciativas.

No Debian, você tem que ser realmente paciente e — de um modo — teimoso para forçar algumas mudanças. Isso é frustrante algumas vezes.

Por outro lado, eu realmente aprecio como as pessoas levam algum tempo para pensar sobre cada uma das propostas, dando uma resposta e discutindo sobre as mesmas: o processo pode ser irritante, de fato, mas o resultado frequentemente é uma melhoria da proposta inicial.



Raphaël: Há alguém no Debian que você admire por suas contribuições?

A maioria dos meus colegas de equipe é simplesmente brilhante e adorável e trabalha duro. Mas eu tenho que admitir que eu admiro particularmente David Prévot: além se ser um webmaster, ele faz um monte de coisas, desde traduções para o francês até edição do DPN. Todas as suas contribuições têm uma ótima qualidade e ele é capaz de te empurrar sempre além para fazer as coisas e fazê-las melhor. Ele é um bom exemplo de como eu gostaria de ser como colaboradora: inteligente, incansável, amigável.

 

fonte: Blog do Santana

 

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Posted by Wladimir

Nerd desde sempre. Começou a programar em Basic, em um CP 400 Color II lá por 1985. Fã de Star Wars, Star Trek e outras séries espaciais. Pai de 4 filhos - um era pra se chamar Linus, mas o nome encontrou muita resistência :( Aliás, software livre é outra paixão. Usuário Linux desde 1999. Presidente da Associação Software Livre Santa Catarina. Defensor do livre compartilhamento. É o compartilhamento que tem feito a humanidade avançar. As ideias são uma construção coletiva da humanidade :) Foi fundador do Partido Pirata do Brasil e membro de sua 1ª Executiva Nacional (2012-2014). Foi também assessor do gabinete do Ministro da Ciência e Tecnologia durante 2016, até a efetivação do golpe que destituiu Dilma Rousseff. Ah, também é editor aqui dessa bagaça, onde, aliás, você também pode colaborar. Só entrar em contato (42@nerdices.com.br) e enviar suas dicas, artigos, notícias etc. Afinal, a Força somos nós!

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