Internet chinesa: mil presos e nenhum comentário

As redes sociais são novamente o alvo dos desmandos oficiais chineses, desta vez, graças ao temor governamental de que as discussões online acerca das atuais turbulências políticas no centro da elite do Partido Comunista entorne ainda mais o caldo deste angu. Os dois principais serviços de microblog do país, o Sina Weibo e o Tencent, anunciaram que os comentários estão suspensos entre 31 de março e 3 de abril. Cada um tem cerca de 300 milhões de usuários registrados.

 

Internautas já homenageiam o moribundo – elevado à categoria de finado – Weibo/Foto emprestada do ambiente internético

O Sina Weibo e o Tencent são espelhos do Twitter – bloqueado na China -, mas oferecem alguns aspectos diferenciados em relação ao serviço no qual se inspiraram. Cada post no microblog permite comentários (como os que ocorrem nas atualizações do Facebook, por exemplo). Foi esta a ferramenta bloqueada. Postar e reproduzir tais posts (retuitar) continuam permitidos. Ou seja, a intenção é diminuir a possiblidade de debate.

Ocorre que os microblogs chineses têm ainda outras duas características interessantes. Também a exemplo do Facebook, os serviços oferecem plataformas de bate papo com a rede de contatos dos usuários. E, em relação aos posts, mesmo que estes contenham os mesmos 140 caracteres a que estamos acostumados, numa língua em que um único símbolo transmite o significado de uma palavra (ou dois, com dificuldade três e raramente quatro caracteres), o espaço torna-se gigante: os chineses não precisam ser concisos.

Então aproveitaram que ainda podem postar para reclamar da medida oficial. Muita gente preferiu botar a boca no trombone – dando indícios de que tabus são menos tabu hoje na sociedade chinesa. Afinal, ainda ontem poucos ousavam dar um pio para criticar medidas governamentais. Hoje, gorjeiam comentários ácidos.

Para entender melhor a medida governamental chinesa às vésperas do final de semana e que repercutiu na imprensa mundial, o melhor é acomodar-se bem onde você está. Este texto vai longe.

O motivo

No dia 15 de março, o governo anunciou que destituía Bo Xilai do cargo de chefe do Partido Comunista da China em Chongqing, mandato que também significava o topo da escala de poder governamental na região.

Na mega cidade – uma municipalidade que reúne 30 milhões de almas sob um clima úmido, quente e temperado com altas doses de poluição, transformando o ver e o respirar em atos cotidianos de bravura pela sobrevivência – Bo forjou um retorno às lições maoístas de fervor partidário (com direito à obrigatoriedade de se cantar hinos comunistas em escolas e indústrias), travestiu-se de líder carismático e engajou-se em políticas habitacionais para os menos favorecidos e, principalmente, foi o arauto de uma cruzada anti-máfia: liderou prisões dos chefões do jogo, da prostituição, da corrupção. Era o caminho que trilhava para legitimar-se como futuro membro da elite política em Beijing: queria estar entre os nove do Politburo, célula que realmente manda no país.

Mas eis que seu ex-chefe de polícia, Wang Lijun, apareceu como a pedra neste caminho. Em fevereiro, protagonizou o início da novela cuja trama configura-se no maior escândalo político em 20 anos – o último culminou no Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Wang passou um dia inteiro no consulado norte-americano em Chengdu, fazendo algo incerto e não sabido: pedindo asilo político, denunciando falcatruas de Bo (hoje envolto em suspeitas de julgamentos manipulados, mortes e corrupção)? Fato é que o caso parou nos microblogs, voltou os holofotes à política interna de Chongqing e o governo central teve de tomar posição. Afinal, a política apresentada por Bo era aquela de que o país não se orgulha.

Em 14 de março, na última coletiva de imprensa que liderou ao fim da Assembleia Popular Nacional (ANP), o premiê Wen Jiabao, advertiu: a China precisa ir mais fundo em suas reformas políticas e econômicas para evitar tragédias passadas, como a da Revolução Cultural (1966-76), período em que a classe intelectual foi perseguida, torturada e morta, assim como os inimigos do Estado, fossem estes quais fossem. Era o terror vermelho. As palavras de Wen não foram corajosas só por rescussitar um tempo que o partido preferia esquecer. Eram também um recado direto a Bo: “sua cabeça vai rolar”, na etiqueta mandarim. De fato foi o que ocorreu no dia seguinte.

Aí que internautas, menos de 48 horas depois da derrocada de Bo, povoaram a internet com posts sobre um suposto golpe de estado protagonizado por Zhou Yongkang (que hoje está na elite política chinesa), com vistas a salvar a pele de seu aliado de Chongqing. Tanques teriam ido às portas de Zhongnanhai, o complexo residencial ao lado da Cidade Proibida onde vivem os políticos chineses, e tiros teriam sido ouvidos na região. Nada foi confirmado a respeito.

Mas a consequência? A prisão de seis pessoas na sexta-feira, o fechamento de 16 websites pelo governo chinês e a censura aos comentários nos microblogs chineses. A manchete deste sábado no jornal China Daily, braço em inglês da mídia oficial, já aponta mil presos neste esforço para “limpar o ambiente internético”. Esqueceu de citar o suposto golpe de estado, como fez na sexta-feira, e preferiu atribuir a cruzada, chamada de “Ventos da Primavera” (A Primavera Chinesa, versão oficial?), a uma campanha que quer acabar com o contrabando de armas, o tráfico de drogas, a venda de órgãos humanos, o comércio de certificados e de notas falsos, além de vazamento de informações pessoais.

A ameaça online

A internet é um campo profícuo para expressar descontentamento. E a China é notória por seu complexo aparato de censura à rede. Hoje são mais de 500 milhões de internautas. Gente que troca informações desde seus dspositivos móveis e gasta mais de duas horas por dia, em média, navegando.

Se você leu a análise sobre o sistema político chinês do Radar China, viu que esta classe crítica cada vez mais organizada é um elemento novo no país e um desafio à manuntenção da legitimidade não apenas do PCC (Partido Comunista da China), mas da construção da imagem de seus líderes. Se você não leu, pode fazê-lo clicando aqui.

Esta é a primeira vez que  o jogo de sucesão presidencial vive debates tão abertos, expondo fissuras internas no topo do poder. Alerta. Afinal, se nem os mandachuvas estão alinhados, como pode o povo todo confiar nos rumos por eles apresentados? Aqui, não imagine-se que sempre tenha havido consenso. Mas é que antes os descontentes ou desalinhados eram calados sem mais percalços. Então, para evitar mais diz-que-diz-ques, melhor censurar.

No caso específico desta sexta-feira, censura-se uma parte – os comentários – e espera-se que o medo de uma ofensiva ainda maior imprima na população online a auto-censura. A velha fórmula do atacar para defender-se e intimidar. Acontece que os tempos são novos.

Internet é dor de cabeça via bits para o Politburo. Transformou-se em enxaqueca no ano passado, quando um acidente entre dois trens de alta velocidade na cidade de Wenzhou deixou ao menos 40 mortos. Ainda de dentro dos vagões acidentados, internautas passaram a popular a web chinesa com fotos, comentários. A linha ferroviária de alta velocidade é uma das meninas dos olhos do governo atual, que quer por meio dela mostrar uma China desenvolvida, dinâmica, rica e com tecnologia de ponta. O desastre não foi apenas literal. A condução das investigações sofreu do antigo vício de ocultar detalhes e poupar figurões. Só que os internautas estavam comovidos e dispostos a seguir o tema – que chegou a sofrer censura na mídia estatal, cuja cobertura foi restrita aos trabalhos de resgate e às histórias comoventes dos feridos e das famílias das vítimas.

Foi o primeiro grande impacto das redes sociais para o governo, quando este deu-se conta do papel que a mobilidade alcança na transmissão de informações. Ainda em 2009, pouco depois da euforia olímpica, oficialmente o governo embarcou na onda online. Wen Jiabao estreou o chat anual com os chineses (cujas perguntas eram filtradas antes de ir ao ar…) e o ambiente web passou a ser cunhado como “Zona Política Especial”, numa alusão às Zonas Econômicas Especiais, os embriões da política de reforma e abertura da década de 1970, a dizer, as primeiras cidades a abrirem-se ao ambiente exterior e às regras do mundo capitalista.

Nesta zona especial, os chineses expressam seus descontamentos cidadãos e promovem debates acerca de seus anseios. A Praça da Paz Celestial virtual, praticamente. Mas só praticamente.

Agora, o anúncio da censura aos comentários nesta sexta-feira relembra o Dia Nacional da Manunteção da Internet, um mecanismo tão triste quanto patético, adotado em 3 de junho de 2009, véspera do 20º aniversário do massacre de 1989. De 3 a 6 de junho, o governo anunciou que redes sociais, sites colaborativos e assemelhados estavam indisponíveis. O Twitter, até então liberado na China, havia captulado em 2 de junho.

Naquela época, já havia versões locais para quem quisesse tuitar entre seus pares chineses, como o Fanfou, o mais famoso deles, que hoje jaz no lixo virtual – vítima fatal do massacre internético.  E agora, será que ainda se pode fechar sites que já estão no cotidiano da população? Em 2009, a população online transitava entre os 300 milhões na China. Hoje, este é o número de assinantes dos microblogs.

 

Wen Jiabao à esquerda de Zhang (com o megafone na mão)/Foto histórica pode ser reproduzida, não?

Ainda que Wen Jiabao peça mais reformas políticas, o governo ainda só sabe recorrer à repressão. Daqui a pouco, quem será calado é o primeiro-ministro. Que, aliás, tem uma carreira interessante. Ele estava ao lado do então primeiro-ministro Zhao Ziyang, que viveu os últimos anos de sua vida em prisão domiciliar ao cair em desgraça após tentar negociar com os estudantes acampados na Praça.

Wen conseguiu escapar ileso da caça aos bruxos pós 1989 e chegou ao cargo de premiê. Fez um governo discreto, talvez até pouco reformista, como dizem os principais analistas sobre China. Mas já avisou que é preciso avançar em abertura. Embora, talvez, tenha corroborado a censura deste final de semana. Ou não.

fonte: Radar China

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Posted by Wladimir

Nerd desde sempre. Começou a programar em Basic, em um CP 400 Color II lá por 1985. Fã de Star Wars, Star Trek e outras séries espaciais. Pai de 4 filhos - um era pra se chamar Linus, mas o nome encontrou muita resistência :( Aliás, software livre é outra paixão. Usuário Linux desde 1999. Presidente da Associação Software Livre Santa Catarina. Defensor do livre compartilhamento. É o compartilhamento que tem feito a humanidade avançar. As ideias são uma construção coletiva da humanidade :) Foi fundador do Partido Pirata do Brasil e membro de sua 1ª Executiva Nacional (2012-2014). Foi também assessor do gabinete do Ministro da Ciência e Tecnologia durante 2016, até a efetivação do golpe que destituiu Dilma Rousseff. Ah, também é editor aqui dessa bagaça, onde, aliás, você também pode colaborar. Só entrar em contato (42@nerdices.com.br) e enviar suas dicas, artigos, notícias etc. Afinal, a Força somos nós!

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This article has 6 Comments

    1. Não estou mais no PCdoB, mas também vamos ser justos né. Quem governa a China é o Partido Comunista Chinês, e não o Partido Comunista do Brasil…

      1. Mas uma das características do PCdoB é seu apoio incondicional ao Partido Comunista Chinês! Pior: também pelo apoio a tiranias como Cuba e Coreia do Norte!

        A propósito: ainda não vi no Portal Vermelho nenhuma crítica ao Stalinismo…

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